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Secura - Conto finalista do Sétimo Prêmio Maximiano Campos de Literatura - Antologia da Editora Carpe Diem - Recife-PE - www.editoracarpediem.com.br




            Sentada na carroceria do caminhão que a levaria à cidade, Ana findara a acomodação das tralhas, do embornal com galinha e jerimuns, enquanto Izabel, no outro braço, fuçava-lhe a teta ressequida; mais por achego que por leite. Dali, não saía nem uma gota. Tirou da trouxa um tiquinho de rapadura, amoleceu na língua, sentiu o gosto da doçura. Enfiou os dedos na boca, lambuzando-os no doce. Depois, melecou o bico do peito e o pôs entre os lábios da menina, que sugou com gosto.

            Era época de chuva. Ana espichou o olhar pelo verde, parecido com sua rocinha. Feijão de corda, jerimum em ponto de comer, milho embonecando, um pouco de tudo, com destino certo: ela, três meninos, mais Izabel. Grudada no peito, a caçula tinha os olhos fixos na mãe. Ana sorriu. Uma menina, depois de anos sem filho. O marido voltou do garimpo, emprenhou-a e sumiu de novo.

            Os moleques se fartavam, trepados nas grimpas; depois desciam de beiço rachado pelo sumo de manga deves. Ela suspirou. Fora-se  o aperreio do feijão ralo com farinha, só de noite, para dormirem sem dor no bucho. Quando se finavam manga, pequi e umbu, a penúria voltava.

                        Ana tinha serviço, raspava macaxeira num quitungo. Da crueira, fazia mingau adoçado com rapadura. Assim criou os três que vingaram. Menos Izabel, nascida na seca; não deu conta de comer, vomitava tudo, mirrando de dar dó. Leite, nunca teve. Para a gente do lugar, era Ana, a seca; que leite não tinha, não chorava nunca e falava sozinha. Ela mesma perguntava, ela mesma respondia.

            Ia até a casa de dona Celeste, na cidade, buscar o leite da Izabel, a cada dois meses. Sua benfeitora tinha nenê pequeno, lhe deu amparo. Até hoje não atina porque ela a ajuda. Agradece à comadre Rita, que suplicou à patroa, um ajutório para a afilhada. A mulher era estúpida. Mandou Rita comprar quatro latas de leite, rápido, entregar para Ana. Celeste, com o canto do olho, dizendo:

— Pago o leite, vem buscar todo mês. Vai, vai — Despachou-a.

            Ana voltou duas semanas depois. Terminara o leite. Os irmãos comeram tudo. D. Celeste que a xingasse, ela merecia — mas que tivesse dó da bichinha. Sentiu a voz furiosa acusando-a de comer o leite e culpar os filhos. Esconderia o leite no mato, como fazia com as rapaduras guardadas para a seca. Finalmente ela concordou em dar o leite. Se Ana comesse de novo, arderia no fogo do inferno. Nem precisava voltar.

            D. Celeste se acalmou um pouco com o passar do tempo, chegava até o portão, fazia gracinha para a nenê.

            Ela ia gostar de ver Izabel? Tomara que sim — torcia — já a caminho da casa da benfeitora. Bateu palmas, Celeste abriu o portão. Ana lhe estendeu o embornal com a galinha raquítica e dois jerimuns:

            —É presente — falou.

            A mulher quase teve um acesso. Que ela levasse de volta, não precisava daquilo, alguma coisa tinha por trás. Rita apareceu, pegou a afilhada no colo. Ana sentiu um troço entalado no peito. Ficaria quieta, por Izabel. Não aguentou, falou baixinho, abrindo o embornal:

            — Eu sou mesmo uma desgraçada, dona Celeste. Esse pouco que tem aqui, que lhe dou de coração, não tem valia para a senhora.

            E seguiu falando de um jeito que Celeste não decifrou, a cabeça baixa, balançando de um lado para outro. Ana só ergueu os olhos quando percebeu Celeste, junto dela, a voz embargada:

            — Não seja boba. Só acho que você precisa mais do que eu. Dá logo aqui senão o bicho vai sufocar aí dentro. Celeste pegou o embornal e o entregou para Rita, que segurou Izabel um pouquinho no colo e a devolveu para a mãe.            Do lado de fora do portão, Ana parou um instante. Seria capaz de apostar que ouvira dona Celeste soluçar.

            À noite, Ana notou aliviada não lhe coçar mais os miolos, em redemoinho. Izabel dormia; a teta doce caída de lado. Ajeitou-lhe a coberta. Os meninos roncavam de bucho cheio. Ana sorriu, fixando o teto do casebre.

            Quieta, assim, percebeu que suava por dentro. O molhadio subira à revelia pela sua garganta até alcançar o nariz, a boca, os olhos. Ana sentiu que tinha de volta a vontade perdida de chorar.

Comentários

  1. Parabéns, Rackel. Tanto no norte como no sul, a desvalia dói.

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  2. Adauto Elias Moreira8 de abril de 2012 às 11:03

    Indignação não existe sem emoção. Emocionei-me com o seu texto, e indignei-me. Literatura que sai da alma.

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    Respostas
    1. É bem do jeito seu este texto. No começo pensei que o evento se passava no Bode. Imaginei até um carro de leite que levavam pessoas, mas depois percebi que o cenário era outro. Rs,rs,rs...
      Bjos

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