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A Mais Pura Verdade


O semáforo fechou. O menor que dirigia o Corolla engatou uma ré o estrago estava feito no carro que esperava abrir o sinal. Fuga e substituição do inexperiente motorista e o chamamento da galera para restabelecer a “verdade” e o novo cenário. Alguém que estava numa esquina próxima viu claramente o adolescente dar ré e bater no carro de trás. A testemunha foi agredida pela ousadia de querer restabelecer o acontecido. O mais irônico foi ter que ouvir: “O velho, além de barbeiro, bateu atrás e acha que tem razão”; como consenso na multidão então formada com o acidente.

Quando algo parece evidente aos olhos da maioria, o autor passa a vítima num piscar de olhos. Ao embasar sua afirmação na aparência e induzi-la pelo que é comum em situações parecidas, carreia para si a prerrogativa da verdade e da razão. Daí em diante é quase impossível desenrolar o nó que se avoluma com base numa premissa falsa, mas com cara e elementos agregados que lhe conferem o viés de autenticidade.

A crença na verdade começa quando se duvida de tudo o que se acreditava até então. Quem não participou da origem, tende a rever posicionamentos e admitir probabilidades do outro ter razão. Preferimos a incerteza, já que odiamos um pouco a verdade por causa da idéia de precisão que lhe é inerente. Se não sabemos do que se trata, sustentar algo que aparenta o contrário é temeroso; pode trazer conseqüências indesejadas. O fato de não termos sido a causa ou os efeitos não chegarem até nós, conferem-nos uma imunidade material. Principalmente se somos indiferentes por opção ao que acontece ao nosso redor, acostumados que estamos ao lusco-fusco e se coisa clarear muito, a luz intensa interfe na nossa rotina incomoda-nos além do necessário e assusta a nossa mente.

Ante o recuo ou intimidação, o autor é beneficiado com a cumplicidade de quem está ao redor. A inexperiência com a mentira faz com que se tome a verdade aparente como antiga e conhecida e olham de soslaio, como quem quer roubar um bem comum a todos; as meias verdades são mais cômodas e seu autor, diante de tal manifestação e adivinha facilmente o que conseguiu elaborar bem e o que não.

Voltamos à pequenez quando fazemos recair a culpa nos outros; estamos no caminho da verdade quando só nos responsabilizamos a nós mesmos; “mas o sábio não considera ninguém como culpado, nem ele próprio, nem os outros” , disse Epicteto, filósofo grego há 1900 anos atrás. Continua atual e precisamos fazê-lo ao nosso ouvido, para que acreditemos primeiro. É um murmúrio solitário em meio à praça tumultuada.

Os sentidos nos enganam e nos fraquejam. Para nós só é verdadeiro o obstáculo contra o qual nos batemos e isto nos basta para se vangloriar de saber todo o contexto e donos da verdade e da razão. Mas nem sempre nossa inteligência entra em ação para entender e captar o todo. A primeira impressão é que fica, como se a realidade fosse imutável. Empédocles , filósofo pré-socrático diz que “Verdade é apenas o que pode alcançar a compreensão de um mortal. Não é uma verdade absoluta, mas proporcional à medida humana”. Verdade, que exigimos e utilizamos no comércio moral onde repousa toda a vida em comum, iniciando uma série de mentiras recíprocas. A visão de mundo que incorporamos ao aderir sistematicamente grupo vencedor leva-nos à convicção de que verdade e mentira são de ordem fisiológica. A essência da verdade é julgada segundo os seus efeitos e estes por sua vez conduzem à admissão de verdades não demonstradas. Ao combatê-las, mostramos a necessidade de encontrar outra via e a lógica é o caminho usual, porém inadequado como único guia, por restringir aquilo que é possível saber -segundo os efeitos - e assim, produz a mentira. A lógica tem dificuldade de denominar com exatidão, tornando-se incompatível com a veracidade.

Corroborando com a inverdade, pela obrigação de mentir segundo uma convenção firme, vale aqui a lembrança de refletirmos moralmente, sobre o modo como esquecemos as coisas que nos dizem respeito. Sim, mesmo agindo inconscientemente da maneira designada como verdade, mentimos.



Comentários

  1. Oi Rackel, ótimo texto, como sempre. Tem selos de presente pra você nos meus blogs
    haikainosventos.blogspot.com
    palavrasnosventos.blogspot.com
    passe la e pegue
    beijos

    ResponderExcluir
  2. Obrigada, Arnold, pelos selos e por prestigiar meus textos. Abraço fraterno

    ResponderExcluir

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