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Azar

Era visível a exasperação daquele senhor diante do caixa eletrônico. Suas mãos tremiam ao tentar pagar um boleto bancário, cujo código de barras a máquina insistia em não ler. Ao lado da máquina havia uma pilha de papéis, extratos, documentos que ele aparentemente não conseguia processar.


- Precisa de ajuda, Senhor? – Indaga a funcionária.

-Ah, preciso sim. Você trabalha aqui? Eu não entendo nada destas coisas. Vocês complicam demais. Porque eu não posso ir até o caixa e lá ele faz tudo para mim? Eu deixo o meu dinheiro aqui, não deixo?

- Mas aqui é bem mais fácil e rápido. Eu oriento o Senhor - Atalha a atendente sorrindo.

- Eu não quero aprender nada. Não preciso disso nessa altura da vida. Eu pago, logo quero ser bem atendido. Quero um funcionário que me dê isto tudo pronto. Será que é pedir demais?

- Claro que não senhor. Vou processando aqui e o senhor me acompanha.

- Você faz tudo aqui para mim nesta máquina. E quando eu precisar de novo? Você está sempre por aqui?

- Sempre tem alguém aqui para orientar quem tem alguma dificuldade...

- A mocinha está insinuando que eu sou burro?

- Não senhor, nada disso, desculpe-me – Defende-se ela. Só quero dizer há um funcionário permanente, lotado aqui no autoatendimento pronto para auxiliar no processamento dos papéis. São muitas funções e é normal que não se saiba alguma delas. Algumas são mais simples, não é?

- Não. Eu não sei como é. Nunca fiz serviço de Banco e agora estou sendo obrigado. É uma humilhação. Mas não tem jeito mesmo. Está bem, vamos fazer isto logo, então - retruca nervoso.

O tom de voz era bastante elevado e ao perceber que tinha platéia abaixou o olhar, o semblante fechado a acompanhar a moça que, impassível, porém de forma amável seguia orientando-o.

- O senhor coloca o seu cartão aqui neste lugar. Pagar um boleto, não é? Vamos lá. A máquina lê o código de barras...

Mais calmo, ele confidencia em tom mais baixo, como que se justificando pelo nervoso:

- Com tudo que eu tenho passado, só problema, só empecilho. Fiquei viúvo em dezembro, na virada do ano, erro do médico. Apendicite. Apareceu assim, do nada!

- Que estranho. Sempre soube que apendicite era algo simples - Diz a funcionária, enquanto segue fazendo o serviço.

- Pois é. Como eu disse, foi incompetência daquele infeliz.

- Meus sentimentos, senhor. Perder um ente querido assim de repente não é fácil.

- Quarenta anos de casado. Companheira para tudo. Sempre disposta. De uma hora para a outra, se foi.

- Pelo jeito vocês eram muito unidos.

- Éramos sim. Ela era muito prestativa, uma criatura de ouro. Nunca precisei pagar empregada já que ela fazia questão de cuidar de tudo sozinha. Excelente cozinheira. Tivemos três filhos. Minha roupa sempre estava ali, pronta. Não existe mais mulher como a minha falecida.

- O Senhor deve estar sentindo muito a falta dela...

- Nem me fala. Não era só em casa que ela era eficiente. Este serviço de banco era ela quem fazia. Eu nunca precisei me preocupar com nada. Resolvia estas pendências todas, controlava o orçamento doméstico e depois me prestava conta. Tudo certo. Sem tirar nem pôr. Era uma tranqüilidade.

- Mas agora eu vou ensinar direitinho ao senhor, pode deixar.

- E o prejuízo?

- ... Não estou entendendo, senhor – Espanta-se a moça.

- Pedi o melhor cirurgião, o melhor anestesista. Paguei à vista e tudo, para não correr risco. Nem plano de saúde eu usei, gastei todas as minhas reservas naquela cirurgia e aqueles dois me matam a mulher. Vai ser difícil encontrar outra como ela. Já não se fazem mais mulheres como antigamente. E agora estou eu aqui empenhado. É muito azar para um homem só!

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