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Sentir-se só



Palavrinha batida que como a companheira saudade, dizemos só existir em português – e que alguém nos corrija, por favor – solidão rima com desilusão e até com frustração. É um equívoco apostar que ela vá rimar com desamor, a reação mais óbvia ao visualizarmos algum solitário, crendo que o olhar distante característico seja indício de não estar nem aí para o resto da população do planeta. É um autômato o solitário, indiferente ao universo ao redor como se bastasse a si mesmo e nada mais importasse. O mundo interior é muito rico e às vezes é o único reduto de compreensão que nos sobra. Nós e ele, o eu interior. Meio louco, não? Mas é como se conversássemos duas partes da mesma matéria. Uma compacta, física e outra imanente, fluída, que por assim ser tem condição de captar impressões mais refinadas da substância densa e conduzir o Eu físico ao entendimento de um processo que aparenta ser um turbilhão de onde não se consegue sair, por isso o isolamento.
O curioso é que dificilmente a solidão é percebida como tal. Como bons masoquistas de carteirinha, miramos a cara alheia e por conta própria diagnosticamos o que ali vemos como raiva da gente nos devem explicações. Ninguém traz uma placa na testa dizendo o porquê do semblante fechado e alguns se arvoram na arte de adivinhar, principalmente nós mulheres. Acostumamos a entender o que os nossos filhos querem desde pequeninhos pela expressão não-verbal e já nos julgamos capazes de fazer o mesmo com tudo e todos. Ok. A intuição e percepção femininas são trunfos, mas não nos esqueçamos que podemos mascarar nossa avaliação com sentimentos que são nossos e a interpretação apressada “enfia” literalmente, palavras na boca do outro. Para quem já está com a sensibilidade desordenada explicar é o que menos interessa. Ao invés de ajudar, contribuímos para enredar ainda mais quem de uma forma toda peculiar, está muito bem obrigado, com o seu mutismo. O problema são os outros que está se incomodando com a cara dele. Ele próprio não está e isto é o suficiente.
Solidão não é só o pesar amoroso pela distância da pessoa amada que nos punge a alma e nos consola. Na sua amplitude é o sentimento de ausência de si próprio, de não ter com quem contar e até a sensação de bastar-se estar indo embora. Não é uma recusa à proximidade. Podemos perfeitamente sentirmo-nos sós numa casa ou trabalho cheio de gente. É a sensação de incompletude e de incompreensão para levarmos adiante planos, projetos que são do coletivo onde estamos inseridos, mas que parecem ser só nossos, já que ninguém nos entende. Nessa faceta da solidão, há que se esperar o tempo, este velho e bom companheiro passar, sem deixar-se seduzir pela satisfação do ascetismo. A contemplação é prazerosa e sozinha não supre a necessidade de convivência. Estar só implica diminuir as demandas. A face demonstrada já afasta os outros e só temos que lidar conosco e conosco a gente se entende, nem que seja para lamber as próprias feridas. O mundo não gira em torno do nosso umbigo e mais dia menos dia precisamos voltar a interagir, aprender, trocar, solucionar. E aí vai nos invadir uma leva de sentimentos de realização, de etapa cumprida e de percalços que dela fazem parte. Os ciclos se repetem e nos cabe vivê-los em sua plenitude, pois sabemos que renovar é preciso, levantar sempre.

Comentários

  1. Concordo plenamente! Não sei é por estar sentindo isso com frequência, ou se é porque a coisa foi toda muito bem esclarecida. Acho que um pouco dos dois. A solidão é uma coisa meio implícita ao ser humano...da mesma forma que não conseguimos viver sem gente ao nosso redor, também não o conseguimos sem consultar, de quando em vez, a nossa individualidade.
    Um big beijo, tiaa!

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  2. Claudissima, querida, que bom a tua manifestação. Tem a ver também com identificar sentimentos. Indagar-se porque eu estou sentindo isto? Isto é meu ou é externo e eu estou tomando as dores?
    Bjs. saudades.

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